domingo, 17 de dezembro de 2017

Torvelinhos das aguadas sumidas

Carlos Eduardo Florence *
Padre Rocco, a mesma ternura, fé, paciência, desde que chegou à Amuraicá, da Itália, há quarenta anos, abre a porta da igreja, antes de começar a missa das seis. Angustiado pergunta ao Senhor, olhando para o horizonte, quanto mais teria de implorar para as chuvas choverem. Registra cinco corridos meses sem águas. O cachorro do cego Damião estica a guia avisando-o dos demais chegados à praça, lambe a mão do sanfoneiro e solto corre para acarinhar a cabra do esquelético Zé Cigano.

Zico da Sorte abre a portinhola do realejo para desafogar o periquito e espalha o som da fortuna para anunciar-se. O destino, que coordena tudo e todos, assume o comando. Desnorteia Zé Cigano, carente de informação e a cata do seu não saber por que e aonde, pela praça aberta. Ordena, o destino, que cego e cachorro sigam para a rua da zona, aonde as tristes mulheres alegres aguardam carinhos. Zico da Sorte se alonga nos desconhecidos para que o periquito destine o destino de cada.


Zé Cigano, manquitolando, e cabrita, perambulam pela praça campeando o mágico. Enfim, uma trilha organizada de saúvas despenca em um olheiro. O cigano se acocora. Sentiu calmo o cosmos lhe envolver, risonho e afetuoso, pelos ombros magros, obrigando-o a expulsar qualquer pensamento alienado. Em cerimoniosas procissões, inclusive com oferendas, durante dois dias e duas noites, a cidade vê aquele cigano mudo, acocorado, conversar com as formigas e seus infinitos.


Padre Rocco crescia nos sermões e afoito saia, em seguida, sem rumo ou porquê, depois das missas, em romaria, distribuindo bênçãos carregadas de perdões e esperanças. Zico da Sorte não deixou de prever o futuro de ninguém, pagasse ou não. Na madrugada do terceiro dia, a igreja abrindo, o sanfoneiro e Zico do Realejo chegaram à praça no instante que Zé Cigano, em transe total, ordenava que a última formiga se recolhesse e o destino no céu trovejasse assim que Padre Rocco consagrasse a hóstia. Uma enorme lágrima celeste chove sobre o braço de Zé Cigano, fazendo-o desmaiar. Com carinho, Damião e Zico o acomodam no banco da igreja enquanto a cabra subia ao altar para dar conta, respeitosamente, da última das pétalas das rosas. O mundo começou a molhar alegre e para sempre. A água limpava poeiras e almas. Padre Rocco, só amor, o destino mandou, fez o sinal da cruz e sentou-se no banco velando carinhoso o cigano desmaiado. 


* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA - Associação dos Misturadores de Adubos.

Publicado originalmente em: http://carloseduardoflorence.blogspot.com.br/

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